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TERCEIRA

PESSOA

 

por lena:

fragmento 01

 

sentia a noite.

como quem sente o inferno.

ainda assim era um alívio...

era onde conseguia estar sem o medo de ser interrompida em seu pavor.

 

a noite era o melhor do dia. costumava ser. silêncio para o barulho particular. mais atenta. desperta toda.

 

sensibilidade é dor insuportável, disseram um dia.

 

uma hora dormia.

toda dia, dormia um pouco. às vezes de madrugada, às vezes quando amanhecia, às vezes...

ou dormia muito.

forçando o sono como pra matá-lo.

matar-se

 

acordava rindo. acordava chorando.  sonhar é tão patético.  o raio é que invariavelmente lembrava dos sonhos.

no fundo sabia.  não dava mais. quanto mais tentava voltar. queria ir.

(...)

naquele domingo estava sem TV. sem cigarros. tinha uma pia cheia, o lixo de dois dias, roupas pra lavar, trabalho pra terminar... e tinha café, peixe no congelador,  a máquina fotográfica, o antidepressivo.

desde sábado não atendia ao celular. não respondia mensagem.

sabia que não conseguiria escrever. história banal. medíocre, a sua. lavou a louça. três dias de louça. três dias de louca. ela gostava de ver a louça na pia. a liberdade da louça na pia até não poder mais. o próprio desleixo. sua casa lhe certificava a vida.

 

a última pessoa que fez com que se sentisse bem,  lhe chamou de forte. ela era um fiapo que mal podia retrucar o que lhe parecia um olhar sem cabimento.

 

naquele tempo lhe diziam muitas coisas descabidas.

fragmento 03

(gosto por)

mantinha o exercício de roubar. qualquer coisa miúda de quem quisesse provocar. não objetos ou quinquilharias. outro tipo de miudeza. um pequeno vício de linguagem, o jeito de pousar o copo sempre bem a meio palmo da beirada da mesa, a mania de muitas vírgulas, de morder de leve os lábios antes da revelação... roubar, roubar, roubar despudoradamente.

 

de quem pudesse notar o roubo ou nada se poderia guardar desse tipo de furto. a desfaçatez presente e cada qual vê o quer. no entanto, o silêncio previsto. uma única vez foi interpelada:

por que faz isso?

o quê?

me imita?

fragmento 02

d

descobriu que exatamente à meia noite o dia terminava

e naquela escuridão dilacerante

começava outro dia.

 

o vazio permitia tudo.

vasculhava o tempo.  as hora eram sempre muito recentes, estavam sempre ali.  e passavam porque são de passar.

 

que indelicadeza fizera o tempo das coisas. a vida.

o tempo não é de delicadezas. há exceções. só exceções. 

pode ser que mude de ideia.

 

a falta de ideia não muda.

 

a falta de ideias é que mudara toda a ordem das coisas. porque agora era preciso uma concentração na observação, uma dedicação ao silêncio e a solidão. uma displicência e o pensamento lhe ia como vinha. nem rastro. sinal que deixou pra lá – outro entendimento que não teria mesmo e nem valeria a pena, pensava.

 

 

(noite)

detestava aquela luz fria de padaria. a casa não era sua. a mesa não era sua. demorar era um verbo esquisito naqueles dias.

 

procurou por uma toalha para aquela noite. todas manchadas. manchas de vinho. manchas de molho. manchas de velhice.

 

preferia a luz amarelada do abajur. a casa não era quente. não era sua.

 

 

(dia)

não andava pelas ruas. não sabia das calçadas.

 

o som das palavras lhe causava dor. emudecia.

passava a mão por onde já não podia passar a vista. já não podia ter calma. já não tinha. nem pressa. passava a vista por onde já não podia a mão. enlouquecia. com pressa.

 

 

 

(cansaço)

ia cansando a si, aos outros. difícil é notar. cansaço é um tipo de enjôo. pode ser uma náusea. pode ser um desacordo com o mundo. uma falta de paciência.

 

pediu asilo para a exaustão. não, asilo propriamente, mas um tempo pra o descanso de outros que desejava evitar. um outro ele. pediu um olhar desentendido. a despretensão lhe interessava. outro jeito de olho. qualquer dizer que não lhe parecesse tão viciado. mas seu jeito de pedir, em geral oblíquo, confundia mesmo. por isso é que tentava escolher antes e muito bem, seu interlocutor. escolher bem é uma cilada. funciona quando a gente menos espera. funcionar bem não depende da escolha. convenceu-se profundamente disto.

 

 

 

(outros)

aquela sordidez prevista. tornara-se braba, casca grossa, diziam ali.

 

diziam. diziam demasiadamente.

 

que tudo aquilo era muito antigo. essas coisas de se ser moderno. que palavra mais antiga, melhor seria dizer contemporâneo. não gostava dessa palavra tampouco. é preciso fazer igual para ser diverso, parecia que todos pensavam assim. achava engraçado. embora não pudesse rir de nada naquele tempo.

 

e diziam. demasiadamente.

embaço. nada compreendia.

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