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quanto a sapatos

  • Lola
  • 3 de jun. de 2017
  • 3 min de leitura

Minha avó cuidava amorosamente dos sapatos, sempre dizia que olhando nos pés você via muito das pessoas e uma vez por semana colocava numa fileira no chão os sapatos da família toda e os engraxava e dava brilho com esmero. Quando tinha acabado os olhava com satisfação e os guardava de novo. Naquela época havia sempre um sapateiro ou dois no bairro. Levávamos com frequência botas e sapatos para botar tampas nos saltos e depois de muito usados também para botar sola nova de couro e ficavam como novos.

Era galego o sapateiro de nosso bairro e passava o dia todo voltado de sapatos amontoados no balcão e nas prateleiras, nas paredes. Tudo mundo cuidava da manutenção do calçado e o sapateiro sempre estava cheio de trabalho. A loja era um pouco escura e tudo era madeira velha e couro, no chão, no balcão, nas prateleiras. Eu pensava que o senhor José, o sapateiro, morava lá mesmo. Você entrava, respirava o cheiro de cola e lá estava ele sentado, a cabeça inclinada sobre o salto do sapato e o martelo na mão. Eu mostrava as botas para o concerto e explicava o que precisava ser feito, ele olhava, dizia quanto ia ser e anotava o nome de minha mãe com giz na sola e botava no montão. Venha na quarta. Dias depois minha mãe me mandava de volta pegar os sapatos renovados. Ir levar e pegar sapatos no sapateiro, comprar o pão e levar a sacola de algodão para botar a baguette recem comprada na padaria, ir comprar uma dúzia de ovos no embrulho de papelão que minha mãe guardava e levava de volta na loja de frango para repor os ovos, formava parte das rotinas que fazia no bairro a pedido de minha mãe.

É bem raro hoje levar a concertar calçado no sapateiro. Eu o fiz uma vez desde que moro no Brasil, foi numa loja de shopping, branca, funcional, asséptica. Descobri agora uma loja na Barra que concerta roupa e sapatos e fui ontem levar umas sandálias para trocar as tambpas do salto. A loja se presenta com uma estética moderna, tecnificada. Havia uma funcionária e um homem que parecia o dono da loja. Ele dava instruções o tempo todo à menina sobre como deviam ser feitas as coisas. O procedimento de explicar o concerto e entrega dos sapatos teve um protocolo complexo. Depois de me escutar, consultar numa longa lista de serviços o preço e mostrar o material com que iam ser feitas as tampas, precisou ser feita uma vistoria cuidadosa do sapato durante a qual o homem ia me indicando os aranhões, roçaduras e marcas próprias do uso que tinha cada sandália, eu tive que assentir e concordar com elas, depois ele começou dar entrada os dados todos da vistoria no computador, anotar a marca que constava na etiqueta do sapato, pedir meu nome completo – quando eu falei meu nome e um sobrenome me olhou estranhado “só?” “só” eu disse, “´é que às vezes se não temos o nome completo pode dar problema - , ainda pediu endereço, código postal, telefone e cpf. Me deu então um cansaço e uma irritação... Fiquei tentada de questionar tudo isso mas acabei respirando com paciência e pensando calada nas distâncias imensas entre um mundo e outro, um tempo e outro. Me lembrei do sapateiro de meu bairro em Barcelona com uma saudade infinita da loja escura, do giz com o nome de minha mãe escrito na sola.

Para que tudo isso? Quanto temos perdido nesse caminho que nos trousse daquelas relações de trabalho e consumo a estes processos absurdos desgastantes e cansativos que ocupam tanto tempo hoje e pioram tanto a qualidade de nossas vidas?

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